quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cena 5

Na rua.

Jacob Eu conheci a Lili. Poucas pessoas podem dizer o mesmo. Antes da Dara, existia eu. Apesar de tudo ter acabado antes de realmente começar. (tempo) Um dia, no Verão passado, estava eu ali na rua, como de costume, à procura de alguma coisa para enganar o aborrecimento, à espera de um milagre, e foi precisamente isso que aconteceu. Coisa pequena, mas milagrosa mesmo assim. Vi uma folha cor-de-rosa de um bloco de notas flutuar por cima do meu ombro e cair no passeio. Apanhei-a e li o que estava escrito.
Lili Era uma vez uma mulher simpática.
Jacob Era uma vez uma mulher simpática.
Lili Esta mulher simpática tinha muitas coisas giras mas não era feliz.
Jacob Era o início de uma história.
Lili Estava-se nas tintas para as coisas giras que tinha. Sentia-se sozinha.
Jacob Todos os dias voltei ali.
Lili O que ela queria mesmo era um bebé.
Jacob Todos os dias voltei àquele sítio e todos os dias a frase seguinte da história flutuava para mim a partir da janela.
Lili Por isso, a mulher simpática tinha esperança e desejava e rezava.

Entra a Mulher Simpática.

Mulher Simpática Por favor, meu Deus. Por favor, dá-me um bebé. Tenho tanto amor para dar, prometo tomar conta dele. Prometo. Por favor, meu Deus, por favor.
Lili Um dia, a mulher ouviu bater à porta. Quando abriu, deu um grito de alegria – encontrou um berço logo ali à entrada. Espreitando para dentro, viu-a pela primeira vez – uma bebé linda só para ela.

Entra a Menina de Vidro e dirige-se à Mulher Simpática.

No entanto, esta menina não era como os outros bebés, mas diferente, especial. Era toda de vidro. Tinha mãozinhas de vidro e dedinhos de vidro, pezinhos de vidro e dedinhos dos pés de vidro, boquinha de vidro e dois olhinhos de vidro… até o cabelo dela era de vidro. A mulher simpática não se importou com isso – olhou para ela e disse…
Mulher Simpática És a coisa mais linda que eu já vi. És perfeita.
Lili Mas sabia que tinha de ter cuidado. Tinha tanto medo que a menina de vidro se partisse que a fechou num quarto cheio de penas.
Mulher Simpática Assim ficas em segurança. Aqui não te podes magoar.
Lili A mulher simpática sentava-se na cama ao lado da menina e lia-lhe histórias, mas nunca lhe tocava.
Mulher Simpática Podia fazer-te mal sem querer. Isso é a última coisa que quero.
Lili Certa noite, a menina de vidro teve um pesadelo horrível…

A menina de vidro dá um grito de terror.

Lili Era um pesadelo muito estranho: apesar de nunca ter visto o mar, sonhou que se estava a afogar lá dentro. Gritou e chorou – estava tão assustada que a mulher simpática a abraçou sem dar por isso…
Mulher Simpática Pronto, pronto, chiu, chiu.
Lili A mulher simpática ficou com a menina até ela acalmar. Deitaram-se juntas sobre as penas brancas e fofas. Pouco depois, a luz do Sol iluminou o quarto. A mulher simpática abre os olhos. Percebe que deve ter adormecido. Sente-se quente e húmida. Olha por ela abaixo – e por um momento sente-se confusa. As penas fofas e brancas estão vermelhas. Pegam-se à pele. Horrorizada, percebe que estão ensopadas em sangue – no seu próprio sangue – tem os braços e as pernas cheios de cortezinhos, o corpo coberto de fragmentos de vidro minúsculos. A menina de vidro desapareceu. A mulher simpática começa a chorar…
Mulher Simpática Mas eu só adormeci.
Lili Murmura: «Coitada da mulher simpática – abraçou a menina de vidro com força de mais…
Mulher Simpática Agora estou outra vez completamente sozinha.
Jacob Quando já tinha as frases todas – quando juntei os papelinhos todos como num puzzle, ela convidou-me para lhe fazer uma visita. E eu fui.

Sem comentários:

Enviar um comentário